Maria Inez Siqueira

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

COISAS DA VIDA.




Ela gostava de cavalos, e gostava do pai que a levava nos finais de semana na hípica para montar  em seu cavalo.
Gostava de escová-lo e de passear segurando-o pela rédea.
Gostava do clima da hípica, se divertia com as outras crianças.
Gostava do cheiro, do sol, das risadas, do bolo de fubá que vendia na cantina.
Gostava de estar com sua mãe, pai e irmã na hípica.
Também gostava quando brincava com amigas na piscina de casa, gostava dos lanches que a mãe preparava e das farras que elas faziam juntas.
Mas gostava muito nos finais de semana, quando seu pai estava em casa e brincava na piscina com elas,
também quando iam ao mercado fazer compras, ou a sorveteria, a vida era boa como deve ser boa a vida de toda criança.
Ate´que um dia seus pais se separaram, já haviam se separado outras vezes, mas as coisas não mudavam muito para ela dessas outras vezes, e eles sempre acabavam se reconciliando. Mas nesse dia eles se separaram para sempre, e então começaram as brigas, a situação financeira ficou difícil, venderam os cavalos.
Sim, venderam os cavalos, inclusive o dela, o cavalo árabe que seu pai tinha lhe dado e que ela amava tanto. Foi assim... Precisa vender.
Vendeu.
Pronto.
Ela ficou muito triste chorou, mas não teve conversa, precisava vender e foi vendido.
A hípica ficou para trás, o cheiro dos cavalos também, o bolo que vendia na cantina, os risos. Não havia mais o pelo lustroso do seu cavalo, nem a maciez de seu passo, nem a alegria em montá-lo, muito menos poder dar voltas conversando com ele pela hípica.
Acabou.
Ela ficou muito triste.
Chorou.
Um dia seu pai em visita lhe prometeu, que dali a dois anos lhe daria outro cavalo e ela voltaria para a hípica. Não podia ser o mesmo cavalo, mas ela teria um cavalo.
Sua mãe pôs-se branca, sabia que era mentira, tentou falar que aquilo não se fazia, que ele não podia mentir para uma criança daquela forma. Ele ficou furioso, disse que não estava mentindo que de fato daria um cavalo a filha dali a dois anos. A mãe sentiu o sangue fugir de suas veias, tentou ter jeito de prevenir a filha lhe dizendo que ele lhe daria o cavalo se a situação melhorasse, mas que aquilo não era uma coisa certa. Sentiu a mágoa da filha contra ela, não em palavras, mas no olhar enquanto o ex marido a acusava de estar sendo má, e querendo jogar a filha contra ele.
Mentiroso era tudo o que ele era e sempre fora, por isso a cada mentira, ele se matava um pouco mais dentro dela, por isso havia se separado tantas vezes dele, era muito difícil conviver com um homem que lhe mentia desde sempre, mas ela fingia que não percebia. Aos poucos foi se esgotando, mas a cada separação ela tornava a acreditar nas mentiras daquele homem que parecia tão bom.
A filha tranquilizou-se, sabia que teria seu cavalo, sabia que seu pai não iria lhe mentir, sua mãe é que era uma chata, claro que ela teria o cavalo.
Dois anos depois ele não só não se lembrava mais da promessa feita, como nem ao aniversário compareceu. A filha esperou até o último instante, seus olhinhos brilhavam ante a expectativa da chegada do pai e do seu cavalo, ela acreditava nele, mas ele não veio.
Entretanto reagiu com rancor quando a ex mulher lhe cobrou, tentou negar tal promessa, mas ela firmemente reavivou sua memória, sem saída e muito bravo, ele justificou-se dizendo que daria o cavalo se ele tivesse condições financeiras para isso, mas ele não tinha.
Era exatamente isso que a mãe sabia que aconteceria, o problema não estava em não dar o cavalo,  o terrível problema estava no tamanho desrespeito de iludir uma criança, o absurdo estava em não ter o pudor de imaginar como ficaria o coraçãozinho daquela menininha tão doce que confiava nele.
Então foi assim que ele começou a se matar no coração da filha.
Não foi ela quem o matou dentro de si.
Foi ele quem se matou.
Nós nos matamos para as pessoas que nos amam, todas as vezes que as desrespeitamos, que não levamos em conta seus sentimentos, suas ansiedades. Nós nos matamos todas as vezes em que mentimos para quem nos ama.
Dias e noites transcorreram e se tornaram anos e anos, ela ainda sonha com o cavalo, tão ocupada com a lida do dia a dia, ainda não deixa de sonhar com o cheiro das baias, com o calor do corpo, com o brilho dos pelos, com a sensação do vento no rosto ao cavalgar, o amor puro do animal que aprendera a amar.
Ela bem que tentou não matá-lo, afinal era seu pai e ela o amava tanto, mas as atitudes dele continuaram lhe dizendo, que ela não tinha tanta importância assim na vida dele. Mas esse é outro assunto.
Fato é que, todos os anos, quando aproxima o dia de seu aniversário, não dá para ela não pensar o quanto aprendeu a amar esses animais maravilhosos, e no sofrimento da perda do seu cavalo. Ainda sonha um dia ter um cavalo.
Não tem mais vontade de ver ou ouvir o pai, a perda maior na verdade foi a da confiança, confiara plenamente nas palavras que tão enfaticamente prometeram e depois se esqueceram. Se ele tivesse tido condições a mãe o teria lembrado como o fez, e ele haveria de cumprir a promessa que já esquecera. O problema não estava em não ter condições, o problema estava em mentir para uma criança, iludir e desiludir, sem a mínima responsabilidade.
Pode ser que um dia ela consiga ter seu cavalo.
Pode ser que um dia ela esqueça sua dor.
Pode ser que um dia ela até esqueça seu amor pelos cavalos.
Pode ser que um dia, com os milagres que só o tempo é capaz, ela entenda que o que ele fez, foi o que ele tinha capacidade para fazer, mentir é um hábito, um vício que se adquire por diversas outras dores. Um dia talvez ela compreenda isso, e o acolha em seu coração generoso, afinal ele é seu pai, e há tantas lembranças boas que ela agora não se permite ter para se proteger da dor, mas um dia provavelmente ela se libertará dessa dor com o auxílio da compaixão e da compreensão. A mãe dela torce para que esse dia chegue o quanto antes.
Um dia.

Portanto você, quando for mentir pensando que é o gênio do engodo, não se esqueça, a mentira tem um cheiro peculiar,  e você estará aos poucos se matando para as pessoas que te amam, e para as quais você mente, engana.

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